SOBRE O CANTO DOA A TUA VIDA: CONSIDERAÇÕES ESTILÍSTICAS, SEMÂNTICAS E TEOLÓGICAS

05/08/2014 23:20

(Por Célio Fontoura - Graduado em Letras - Português/ Latim)

 

    Trata-se de um canto de terceiro grau, usado no momento do Ofertório em nossas Celebrações Litúrgicas; em especial, no dia consagrado aos Padres Católicos, em alusão a São João Maria Vianney, Padroeiro dos Sacerdotes. A análise teológica da letra é um tanto subjetiva, pois a mesma pode ser lida como sendo dirigida ao próprio Cristo (tendo em conta o “T” maiúsculo em Tua vida), aos Padres (Alter Christus) e aos vocacionados ao Sacerdócio, como veremos. Assim sendo, minha interpretação não constitui um paradigma engessado; é apenas a minha leitura. Nesta minha análise, portanto, estou considerando a letra como sendo dirigida aos nossos Alteri Christi (outros Cristos).

     A canção, do ponto de vista teológico, possui uma letra perfeita, além de ser ornada por uma melodia de porte angelical. Esses dois elementos, em harmonia, completam o que se pode chamar de Música Litúrgica, dispensando quaisquer elementos acidentais: baterias, palmas e gestos; podendo, inclusive, ser executada à capela (sem acompanhamento de instrumento musical).

PRIMEIRAS ESTROFES DA LETRA:

     A beleza da letra reside em suas inversões sintáticas com omissão de conectivos, tornando-a bem sintética, mas sem prejuízo à mensagem que comunica.

        Uma noite de suor / sobre o barco em alto mar / o céu começa a clarear / a Tua rede está vazia.

        Na ordem direta, e com conectivos, ficaria:

        A Tua rede está vazia (em, após uma) uma noite de suor sobre o barco em alto mar, (quando) o céu começa a clarear...

        A estilística dessa primeira construção está intimamente unida à teologia. A semântica da frase pode ser:

        A Tua rede está vazia = Rede vazia representa as frustrações, as aflições e as incertezas que assolam a vida do Sacerdote em seu desprendimento material. Também pode significar a busca incessante pela santidade e conversão no dia a dia. Conversão do Sacerdote e do rebanho que lhe fora confiado (isso é configurado nas entrelinhas pelo verbo de ligação “está”; que, no presente do indicativo, aponta para uma ação realizada agora, no presente). Com efeito, o verdadeiro Padre, considera-se sempre uma pessoa em conversão constante e um, ainda, não santo. Rede também diz respeito à pescaria; é uma metáfora em alusão a Pedro, Princeps Apostolorum (Príncipe dos Apóstolos) ter sido, em sentido stricto, pescador de peixes e, depois de investido por Jesus, Pescador de Homens. Colocada no final da estrofe, essa oração é pouco valorizada (estilisticamente falando). De fato, ela tem menos força que as locuções adverbiais: Uma noite de suor / Sobre o barco em alto mar, que as precedem. Nesse primeiro momento valoriza-se a luta do Padre e o campo de batalha. Na estrofe seguinte, justifica-se a rede vazia.

         Após uma noite de suor = Representa a luta diária do Sacerdote, que deseja ardentemente manter-se fiel ao chamado de Deus. São as batalhas de ordem espiritual e material: o cuidado em manter a, tão difícil, fraternidade entre os fieis, o desgaste físico causado por acúmulo de funções, as dificuldades financeiras, as tentações do demônio, que odeia os Padres, a saudade da família (muitas vezes distante) e as ingratidões. O suor são as lágrimas ocultas sob a solidão das muitas noites escuras.

        Sobre o barco em alto mar = As noites envolvem o barco em alto mar, assim como aconteceu com Pedro (em um momento de tempestade, quando teve sua fé provada). A caminhada do padre em águas profundas é sempre permeada por provações de toda espécie. O alto mar é um lugar hostil através do qual os Padres navegam.

        O céu começa a clarear introduz à idéia contida na segunda estrofe, como veremos.  

      Mas a voz que Te chama / Te mostrará um outro mar / e sobre muitos corações / a Tua rede lançarás.

        A oração inicia-se com uma conjunção adversativa (“mas”). Ou seja: apesar de todas as dificuldades presentes, a voz que Te chama, que é a voz de Deus, Te mostrará um outro mar.  Essa frase parece indicar que a letra foi escrita para os Sacerdotes. A questão da maiúscula em “Teu” justifica-se pelo fato de que o Sacerdote, sendo outro Cristo, deve ser tratado com a devida reverência.

        O pronome indefinido “um” antes de outro mar, deve-se à questões de métrica. O autor invoca a “licença poética” e faz essa construção, indiferente às normas padrão da Língua Portuguesa, para evitar o desagradável uso do alongamento da vogal ( Te mostraráa.. outro mar).

        O verbo mostrará, no futuro, representa a felicidade pelo esforço empreendido na messe. Esse outro mar pode ser o mar da eternidade junto a Deus, a ser gozado pelas almas salvas que estiveram sob os cuidados do Sacerdote ao longo de suas vidas na terra. É Deus dizendo ao Padre que seu esforço, mesmo tendo parecido em vão nos momentos em que a rede estava vazia, sempre vale a pena, pois existem corações abertos às redes dos Pescadores de homens.

        Poderíamos ter explorado muito mais profundamente as duas primeiras estrofes dessa letra. Contudo, o texto ficaria muito alongado. Assim sendo, deixemos o refrão e as demais estrofes para outra ocasião.

        Cumpre lembrar aos nossos compositores católicos sobre os cuidados que devem observar antes de distribuir suas composições. Creio ser necessário consultar, antes de tudo, Padres com sólida formação em Liturgia e Teologia, a fim de que as suas obras irradiem mensagens tão eloquentes e belas quanto as da canção que brevemente comentamos.